Na prisão.
Vocês podem não acreditar, mas a prisão tem
as melhores rodas de conversa que eu já vi. Sem hipocrisia: se as pessoas não
tem algo decente para dizer, simplesmente mergulhamos no seu adorável silêncio
até que sua mente consiga alcançar algo. E quando o mar do silêncio seca, é lá
que largamos nossas vadias, todas as histórias do passado, todos os desprezos e
saudades. É lá que largamos nossos crimes.
Mas como essa é uma situação incomum e eu
não sei mais se estou mesmo na prisão ou na boca do Inferno, vou começar do
começo.
Meu nome é Edgar Sem Sobrenome. Em algum
momento de minha jornada eu apenas o esqueci e isso deixou de ser importante.
Eu estou preso há mais ou menos quatro anos, porque matei minha mulher e meus
dois filhos. A primeira eu estuprei até meu pau estar cansado demais para gozar
e depois dei um tiro bem na sua cara, não antes de memorizar bem a expressão em
seu rosto; ela nunca esteve mais linda pra mim, se quer mesmo saber. Bom, eu só
tinha uma bala no velho revólver do meu pai, então tive que improvisar e matei
o resto da farinha com uma faca que encontrei na cozinha. A faca estava meio
cega, então foi um processo demorado e eu tive que ficar ouvindo suas vozinhas
gritantes. Se não fosse por isso, eu teria conseguido fugir, aliás.
Por que eu fiz isso? Porque eu estava de
saco cheio. Ponto. Não há nenhuma razão psicológica escondida por trás de tudo,
nenhum trauma de infância, nenhum parafuso solto, nenhuma maldade embutida
nisso tudo. Eu só estava de saco cheio. E talvez tenha sido uma atitude meio
radical, mas entramos na questão da nossa amiga vadia de novo. Acabado e
enterrado.
Na verdade eu tive uma vida medianamente
ótima até surtar. Eu tinha uma mulher, e apesar de todos os homens olharem para
ela na rua, era eu quem via suas pernas abertas à noite. Eu tinha filhos e,
apesar de serem filhos, eles eram filhos; tenho certeza de que você entende o
que eu quero dizer. E eu não era um fracassado: toco saxofone e fui um grande
nome do jazz – ou tão grande quanto se pode ser hoje em dia.
Claro que eu não fui nenhum santo. Ninguém
é.
Houve dias em que cheguei mais bêbado que
Bukowski no meio de um bloqueio criativo; eu gostava de beber, isso fazia com
que eu esquecesse de minhas tristezas de classe média por um tempo, mas eu
parei depois que fui preso e não porque aqui não há bebida, mas simplesmente
perdeu o sentido.
Eu tive uma amante também. Helena. Nome
lindo, não? Às vezes eu o repetia em voz alta no meio da nossa cozinha escura
só pra ouvir esse som. Isso não significa que eu a amava, e muito pelo
contrário. Helena e eu passamos bons momentos juntos, mas pra mim ela era só um
corpinho bonito para quando eu ficasse muito cansado de ver o da minha mulher.
Além de tudo, seus olhos sempre me perturbaram: eram lindos olhos azuis, sim, e
me faziam lembrar de Benjamin Button e sua Daisy, mas eu lhe digo uma coisa: se
havia algo naqueles olhos azuis, era a morte em sua forma mais bonita e
assustadora. Querida, às vezes eu olhava para aqueles olhos azuis depois de
terminarmos o sexo e a vontade que eu tinha era se socar o rosto de Helena até
ele se transformar numa massa vermelha e disforme, arrancar aqueles dois lagos
do meio dessa massa e jogá-los tão longe que eu não pudesse me lembrar deles.
Eu sempre imaginei que deveria haver algum trauma por trás daqueles olhos, mas
nunca tive coragem de perguntar.
No fim, Helena se casou com um publicitário
bonitão. Ela me mandou uma carta um dia antes do casamento dizendo que nosso
relacionamento tinha acabado. Eu nunca entendi porque ela chamou o que nós
tínhamos de relacionamento ou como ela conseguiu manter nossos encontros longe
dos olhos do seu então namorado e na semana do casamento ser moralista o
suficiente para me dar um pé-na-bunda – não que eu tenha me importado. Mas
sempre me perguntei se seu marido via os mesmos olhos azuis que eu.
O verdadeiro devaneio é aquilo que chamamos
de vida – como diria Pig. Mas, de qualquer forma, essa história não é sobre
Helena ou sobre seus seios incríveis, que na verdade compensavam na maioria das
vezes seus olhos perturbadores. Essa história é sobre o velho Edgar e sobre
como um dia ele perdeu a cabeça de verdade. Ou quase isso: como eu disse, não
sei mais onde estou ou o que sou e só me deu vontade de contar uma história.
Eu talvez tenha causado a impressão errada,
então aí vai um fato que você pode confirmar com todos os números da agenda de
Edgar S.S.: eu não sou um cara violento, nunca fui. Mas, como diria Pig, somos
o que pensamos. E eu sempre pensei muito em violência. Sempre enforquei os
mendigos da minha rua com as mãos molhadas de sua birita. Sempre esfaqueei
aquelas prostitutas que ficavam em frente ao clube de jazz uma por uma. Sempre
estuprei as garçonetes incríveis que trabalhavam lá. Em meus pensamentos, eu
sou o cara mais violento que já conheci. E olha que estou preso.
Na condição de artista, era me permitido
beber, fumar e gritar de vez em quando; eles simplesmente olhariam compadecidos
para mim e diriam que era minha mente artística em crise. Certo. Mas, na
realidade, eu só tinha machucado uma pessoa antes de matá-los, e foi sem
querer. Eu estava andando numa rua movimentada, falando ao celular com minha
esposa, numa briga ridícula de marido e mulher, e num gesto exagerado e raivoso
acabei acertando em cheio um homem apressado que passava muito próximo de mim.
Eu pedi milhões de desculpas e me ofereci para levá-lo a um hospital, onde
poderiam fazer um belo curativo, mas a única resposta que ele me deu foi um
olhar indignado. Gente da cidade grande.
Recapitulando, eu nunca havia machucado
alguém intencionalmente até aquele
dia.
Um dia que ironicamente começou muito bem. Como
naqueles filmes de terror, onde nos primeiros minutos todos são amigos e vivem
felizes, até que a primeira burrice da loira gostosa os leva ao inevitável fim
com o sádico assassino vendo seu sangue jovem escorrer como esgoto numa vala.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Hey!, se você não comentar, como vou saber que passou por aqui? Deixe sua opinião e faça uma pessoa feliz ~voz campanha de solidariedade~