O escritor. II
Na mesa do bar, o copo cheio encara. No
cinzeiro, o cigarro aceso encara. Do outro lado do salão, um bêbado encara. E o
escritor encara de volta. Num bar, se embebedando, esperando a D. Inspiração,
esperando um amor, esperando a morte. Tão típico: o escritor fracassado, o
escritor que não quer encarar seu fracasso, o escritor que sai para beber e
ficar ouvindo músicas antigas de um rádio velho. Porém, apesar de todo o seu
típico julgamento, típico leitor, o escritor também sai para observar, para ver
se a D. Inspiração não se possuiu de alguma prostituta, ou alguma garçonete, ou
algum bêbado igualmente fracassado, ou todos eles; ou nenhum, e então o
escritor voltará para casa tão fracassado quanto saiu (e só um pouco menos
racional).
Porque o escritor é mais que um psicólogo, é
mais que um pintor, é mais que um barman. O escritor observa todas as
peculiaridades do seu corpo, todos os seus trejeitos; o escritor observa os
trejeitos e começa a analisar toda uma vida; o escritor pode ouvir inúmeros
bêbados e desgraçados e ainda se aproveitar deles; você pode não perceber
quando cruza com o escritor, mas ele percebe que você cruzou com ele. Pelo
menos é isso o que os escritores fracassados fazem: são menos um Hemingway e
mais um Álvares de Azevedo.
Mas sabem observar.
O escritor sabe observar a garçonete, que
tem trinta anos disfarçados de quarenta e não parou de paquerá-lo desde que o
bar abriu – que, por acaso, foi quando ele chegou lá. A garçonete que foi
estuprada pelo pai quando era mais nova. A garçonete que na verdade só
sujeitava àquele trabalho para pegar alguns caminhoneiros bêbados e nojentos
como o seu pai e matá-los num beco escuro, para depois cortar seus pênis e se
masturbar com eles.
Caminhoneiros bêbados como aquele que
continua encarando o escritor. O caminhoneiro bêbado que nunca leu um livro e
que provavelmente nem sabia que escritores existiam. O caminhoneiro bêbado que
mais cedo foi rejeitado pela moça do caixa do posto de gasolina e agora bebia
para tentar planejar a lição que daria naquela vadia. Lição que não poderia
dar, já que provavelmente seria morto num beco escuro depois que o bar
fechasse. Provavelmente.
Mas talvez a falsa garçonete quisesse apenas
tirar uma noite de folga, sair com o gerente do bar ao invés de se masturbar
com um pênis literalmente morto; ou talvez só se cansasse disso tudo, talvez só
fosse pra casa tomar alguns remédios do armário de remédios que ela nem sabia
para que serviam, ou tomar um copo daquele leite em que o gato pôs a língua e
que já estava na geladeira há pelo menos um mês e uma semana. Ou talvez ela
realmente preferisse matar o caminhoneiro bêbado, gentil e apropriadamente
apelidado por outros caminhoneiros de “Pancinha”.
Mas Pancinha estava satisfatoriamente bêbado
e já tinha planejado o que faria com a moça do caixa do posto de gasolina, que
incluía simplesmente chegar lá quando o estabelecimento estivesse fechando e
obrigá-la a lhe fazer um boquete. Direto e reto. Isso provavelmente a ajudaria
a voltar ao seu lugar.
- Mais alguma coisa, escritor? – a voz rouca
da garçonete, que pensando bem, poderia muito bem se encaixar numa cena de
masturbação num daqueles pornôs baratos, mas dificilmente tinha sido estuprada
e dificilmente seria uma psicopata.
Além disso, o bêbado que o estava encarando
nem era tão gordo, só se encaixava na forma estética atual de “cara normal”. E
nem parecia caminhoneiro: usava um terno e carregava uma maleta de couro igual
aquela que aparece em Pulp Fiction (mas não tinha nada brilhando ainda). E
provavelmente nunca tinha tentado transar com uma caixa do posto de gasolina.
Mas tinha um outro cara pra salvar mais uma
noite fracassada de um escritor fracassado. Ele tinha uma barba mal feita, um
cigarro entre os dedos que juntava sua fumaça com os demais cigarros no
cinzeiro, olheiras terríveis, mas mesmo assim seus olhos eram bem abertos e
atentos, o que lhe dava um aspecto meio psicopata ou meio suicida. Ele até
poderia se parecer com um escritor... Até ele perceber que esse cara era apenas
o seu reflexo num espelho manchado no fundo do bar.
- Não – o escritor observa a garçonete sair
gingando de volta para o balcão – Ou talvez só uma dose de Inspiração, por
favor.
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